Eu estava no sertão de Alagoas, em fins de 1972, quando num início de noite, ao voltar de filmagem nos canaviais da região, encontramos a pequena cidade onde estávamos hospedados inundada por etérea luz azul, como num cenário fantástico de modesta ficcão científica. Conforme nos aproximávamos da praça principal, descobrimos tratar-se um aparelho de televisão, ainda em preto-e-branco, que o prefeito acabara de mandar instalar para uso público. Na praça, em torno do totem, vaqueiros e feirantes, coratadores de cana, pequenos funcionários rurais, homens, mulheres e crianças de todas as idades, com suas roupas de campo e instrumentos de trabalho, assistiam embevecidos ao show dominical da época, animado por apresentador vestido em impecável smoking, usando jargão e discurso tão distantes, mas que muito em breve se tornariam familiares de todo o Brasil.
Acho que foi ali, com aquela experiência, que comecei a me dar conta do que estava para acontecer no país, esse permanente laboratório de misturas, espaço histórico de convivência entre arcaico e moderno, autoritário e democrático, miséria e luxúria, inferno e céu. O audiovisual em geral mas a televisão de modo muito particular e relevante seriam, nas duas décadas seguintes, os principais protagonistas desse drama cultural que não sai de cartaz.
No início dos anos 70, cerca de uma década antes da Europa, a televisão brasileira já estava transmitindo em rede para todo o país, via satélite, um grandioso investimento do governo militar, feito em nome da segurança e da integração nacional. Em contrapartida, sob o mesmo pretexto ideológico, a ditadura montava um sistema concentracionário e cartorial de concessões, capaz de institucionalizar o necessário controle social da população. Como em nossa velha tradição das capitanias hereditárias, uma vez escolhidas, os beneficiários das concessões não têm de dar mais satisfação a ninguém, a não ser ao rei.
Tecnologicamente de ponta, atualizada, e, muitas vezes, à frente do que se faz no resto do mundo civilizado, a televisão brasileira estruturou-se em condições institucionais semelhantes às dos velhos engenhos de açucar do Nordeste. Da varanda de suas casas grandes, cercados de suas famílias e agregados, os quatro ou cinco senhores de engenho do audiovisual e da informação decidiam sobre o destino da senzala – nós, a população brasileira e nossas mentes.
O que está em questão não é a indiscutível competência e qualidade da televisão brasileira, mas a forma sobre a qual ela se consolidou institucionalmente, enquanto dava seu grande salto tecnologico. No Brasil, não tomamos nenhuma providência para nos proteger dessa espécie de Estado clandestino, como fez o resto do mundo, através de leis antitruste, compromissos de programação, reserva de produção e, sobretudo, a regra fundamental vigente em vários países civilizados, segundo a qual, pelo menos parcialmente, quem exibe não produz.
Nessas circunstâncias, nossa televisão dificilmente dara voz e acesso às representações dos mais variados segmentos da sociedade brasileira, dos regionais aos ideológicos, passando por toda a sorte de diferenças que temos a obrigação de garantir e até estimular.
Para o intelectual crítico que, à direita ou à esquerda, comeu mosca no passado recente, desprezando a televisão por falta de ‘‘aura’’, coloca-se agora num dilema – reconhecer que ela, a filha bem-sucedida da ditadura, concentracionária e superficial, escapista e autoritária, é amada pelo povo. Costumamos explicar seu sucesso pelo chavão mitológico do ‘‘monopólio da Globo’’. Mas é preciso ter a coragem de enfrentar o fato de que a Globo não é absolutamente um monopólio, somos nos que escolhemos vê-la, mesmo podendo mudar de canal ou desligar o aparelho quando bem entendermos. A Globo é uma escolha nossa e daí que vem seu poder – isso deve nos servir para desvendar não a Globo, mas o povo que a escolheu. *
No caso do cinema nacional, também continuamos enganados. Por coincidência ou não, assim que acabou o regime autoritário, alguma coisa crítica, típica da tradição da cultura brasileira, permaneceu inibida, sufocada pelo arrastão de uma nova imagem, de uma outra idéia de Brasil, certamente inaugurada pela televisão, mas consagrada sem dúvida pela própria população. A Globo foi o fascinante carro alegorico que abriu o desfile de um novo imaginário brasileiro, fixando uma certa percepção do pais, mesmo que outra realidade a confrontasse das arquibancadas. Que aplaudiam.
Nossa cultura sempre viveu desses enganos. Ou melhor, dizendo, dessa dualidade entre o que somos e o que gostaríamos que fôssemos. Diante do barroco colonial, extasiamo-nos embevecidos, orgulhosos de nossa própria exuberância e sensualidade. Em geral, associamos seus excessos a êxtase místico e gosto da vida, uma contradição que se resolve pelo sentimento de extrema generosidade que exala dos dois termos. Quase nunca lembramos que essas igrejas douradas foram construídas por milhões de negros escravizados, vítimas do mais torpe, corrupto e selvagem regime social de que se tem notícia nesse continente. Foi esse o sangue que financiou nosso sublime delirio, quando começamos a construir o mito de uma civilização solar e o mundo toma conhecimento de nossa ‘‘originalidade’’. Como as duas realidades fazem sentido, temos sempre intelectuais a nos falar de ambas. Se Gregório de Mattos e Antonio Vieira nos remetem à miséria e à corrução, ao inferno que encontram aqui, entusiasmados viajantes europeus descrevem nossas maravilhas e o padre Simão de Vasconcelos é levado ao tribunal da inquisição por afirmar categoricamente que o paraíso terrestre estava no Brasil.
Durante todo o século XX, a cultura brasileira oscilou entre a busca de uma identidade nacional e o desejo de integração cosmopolita na ponta do mundo conteporâneo. Essa busca de identidade não foi só um esforço de poetas e artistas, mas também de pensadores que centram nossa originalidade na idéia de um brasileirismo afetivo e gentil, retratado e construído por nos mesmos e vendido ‘‘la fora’’ com muito sucesso, até recentemente. Essa idéia de afetividade é recorrente em quase todos nossos intelectuais do periodo, do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre ao homem cordial de Sergio buarque de Hollanda, do macunaimismo de Mario de Andrade à civilização gozosa de Darcy Ribeiro, do populismo carinhoso de Jorge Amado aos malandros e heróis de Roberto da Matta. Talvez devamos levantar a hipótese de que, embora essa afetividade nunca tenha se manifestado verdadeiramente em nossa história social, pode ser que ela seja o mais belo, profundo e secreto projeto inconsciente do povo desse país, sempre invibializado pelo Brasil dos Infernos, mas detectado e textualizado por mestres mediúnicos. O mistério do galo não está na ilusão de que ele seja capaz de fazer nascer o sol, mas em que seu canto anuncia a existência do sol, mesmo ainda por nascer.
Foi com a ditadura militar que o mito do ‘‘estilo brasileiro’’ começou a ser destruído. Mais do que o sucesso de uma cultura, de nossa música, cinema, arquitetura, literatura, o que encantava o mundo e a nos mesmos era a esperança de um novo ‘‘modo de ser’’ que estava por trás das canções, fimes, palácios, poemas. O projeto de civilização contido numa maneira diferente e sedutora de jogar futebol e brincar o Carnaval nos ajudava a suportar nossa barbarie social e, muitas vezes, esquecê-la. A violência do regime autoritário começou a enterrar, com seus torturados, mortos e desaparecidos, o futuro gentil do ‘‘estilo brasileiro’’. Mas foi em plena democracia que ele se acabou de vez.
Não percebemos isso de pronto. Para nós, durante a ditadura, o futuro, como tantos brasileiros, estava apenas exilado temporariamente, ele voltaria nos braços da democracia restabelecida. Derrubado o muro da ditadura, encontraríamos de novo a estrada interrompida, ao longo da qual todos os nossos problemas seriam resolvidos. Não sabíamos que o país havia perdido a inocência, para sempre. Tivessemos nós prestado mais atenção à história da Colônia, do Império, da República Velha, teríamos visto que o Brasil nunca foi muito diferente do que é. O mito brasileiro, transmutado varias vezes, é que sempre amenizou nossa visão de injustiça e violência.
Hoje, sem a proteção do mito e com as liberdades de volta, não paramos de nos maldizer. Não é que o Brasil tenha piorado, nós é que começamos a ver com clareza o que ele sempre foi. E a falar disso pelos cotovelos.
Como saiu de moda o álibi paranóico de uma certa cultura terceiro mundista, para a qual a culpa é sempre dos outros, ameaçamos cometer um novo erro, o da ‘‘clownização’’ da vida política, caindo numa extraordinária euforia nagativista em relação a tudo que a ela se refere. Ignoramos ingenuamente que a vida politica é a única mediação que temos para sair do dilema, se a destruirmos estaremos queimando nosso próprios navios.
O sentimento de fracasso do ‘‘estilo brasileiro’’ e, por conseqüência , da própria idéia de construção da nação, transformou-se num delírio pessimista, num pessimismo eufórico que chega às raias do autolinchamento público. Mas também num certo ceticismo oportunista – é que, ao consolidar a idéia de que o Brasil não tem mesmo jeito, estamos liberando suas elites predatórias a continuar o saque, pois não se conserva o que é ruim, não se constrói sobre o que não vale nada.
Temos o pretexto perfeito para nossa ma obra ou simplesmente para a ausência dela. Não somos bons engenheiros, jornalistas cineastas, jogadores de futebol, porque o Brasil não presta, nada de bom se pode fazer aqui. E isso nos pacifica, justifica nossos fracassos pessoais. Inventamos, assim, como ideologia de nossa impotência, o niilismo chique.
Estamos paralisados entre a saudade do matão, de um Brasil pastoril, barroco e cordial, e a decepção com o futuro que tanto nos prometiam. Talvez o Brasil seja mesmo o país do futuro, so que o futuro já passou. Esse estado de espírito coincide com o advento da ‘‘nova ordem mundial’’, ficamos tentados a deixar por isso mesmo, os vencedores ungidos produzirão para nós o que precisamos consumir. No máximo, desenvolvemos uma espécie de cultura da dublagem, colocaremos nossas vozes em suas facinantes dublagens, nossas almas em suas musicas, nossos corações em tudo o que eles invetarem para nosso gozo. Abrimos mão de produzir, no máximo reproduzimos.
Mas o desencanto também acorda outro tipo de consciência. Até aqui, mesmo nossos intelectuais mais críticos sempre se comportaram diante da realidade como se nada tivessem a ver com ela. E como se fôssemos todos turistas no inferno, fotografando as desgraças que nele vemos – críticos, mas turistas. Hoje, começamos a descobrir que o inferno, além dos outros, somos nós mesmos. O que estavam fazendo os assassinos da Candelária senão matando os que vivem na rua em nome dos que se protegem dentro de suas casas, os que têm fome dos que comem duas vezes por dia ?
A partir de uma consciência do que finalmente somos, sabemos que nada mais sera capaz de recuperar o mito paradisiaco brasileiro, que nenhuma bossa, nenhuma ginga ou jeito o trara de volta. Tanto mehor – so nos resta tratar de inventar um outro Brasil, a partir do ponto que estamos; o inferno e o paraíso estão ambos aqui mesmo, na forma de realidade e de um projeto possível para ela. Tudo depende de nós, não apenas um ‘‘nós’’ coletivo de nação, mas de cada indivíduo capaz de pensar e escolher. O fim do mito coletivista criou uma nova consiência da individualidade, erguida não sobre o egoismo capitalista, mas sobre a responsabilidade ética.
O sentido desse novo individualismo pode ser a questão central da nossa cultura que surge neste final de século, herdeira direta da televisão, filha do audiovisual com a informática.
Estamos diante de um mundo novo, terrível e maravilhoso, condenados a ele. Não para daqui a dez ou vinte anos, nem mesmo para o já tão proximo século XXI ; mas para daqui a muito pouco, para amanhã. Como será, por exemplo, o nosso inevitável ‘‘barroco interativo’’ ?
A natureza humana se democratiza pela cultura. E a isso que chamamos de civilização. A nossa, como temos visto, vive da dualidade entre um inferno real e o projeto de paraíso. Estamos ha séculos diante desse dilema, sem conseguir decifrá-lo. Mas, ao contrário do que pensa nosso corrente pessimismo, podemos estar às vésperas de numa oportunidade de resolvê-lo, em nosso potencialmente fértil labotatório de misturas.
Cito o poeta e filósofo Antonio Cicero, em ensaio recente: “podemos dizer que o paradoxo do Brasil esta em sendo capaz de oferecer a prefiguração para solução de alguns problemas que poucos paises conseguem efetivemente enfrentar, não ter conseguido efetivamente enfrentar alguns problemas que muitos outros países já resolveram, total ou parcialmente’’. A nossa grande chance esta justamente na solução desse paradoxo.
Fracassado o socialismo real, o que fazer, por exemplo, para manter viva a indignação dos homens diante da miséria e da injustiça, sem precisar dar livre curso às ideologias que como dizia Vaclav Havel, visam apenas preencher, a qualquer custo, o vazio neurótico deixado pelo desaparecimento do marxismo?
Como encarar a nova consciência de nossa individualidade, essa irremediavel solidão a que estamos condenados, só aplacada pela solidariedade aos outros ? Como garantir nosso o imprescindível direito à diferença, conquista recente da pessoa humana, sem excluir uma certa e universal hierarquia de valores, sem a qual não ha progresso material e espiritual da humanidade, que é uma só? Como elaborar o fato de que a cultura se opõe à natureza, sendo um universo alternativo e paralelo a ela, sem por isso ter que destruí-la ?
Duas idéias estão contidas em todas essas questões – a de tolerância e a de crise. A primeira, superior à de liberdade, da origem ao nosso semelhante – a tolerância é a liberdade do outro. A segunda nos afirma que o mundo jamais será um lago suiço de águas tranqüilas, que a crise é o estado humano por excelência, a viagem é o nosso porto, passar é o nosso dever.
Talvez essas duas idéias nos possam levar a uma espécie de neo-humanismo não triunfalista, ao fim de qual não se encontram mais as glórias que nos foram prometidas pelos humanismos clássicos, a vida eterna, a parúsia, a sociedade sem classes, o controle sobre a natureza, essas coisas que nos fizeram, através dos séculos, travestis de Deus. Em vez disso, aprendemos a conviver com nossos próximos defeitos, alguns irremediaveis, ‘‘suportando-nos uns aos outros’’, como está no evangelho de São Marcos.
O homem não é nem será nunca Deus. O que o faz diferente do resto da natureza é que ele aspira a sê-lo.
Quem sabe, na alvorada de uma nova cultura e da nossa nascente consciência da crise crônica, nos tenha sido finalmente reservado o papel de construir esse, ao mesmo tempo glorioso e modesto caminho, de levantar catedrais imperfeitas com a sucata de todas as civilizações que nos formaram, de todas complexas etnias, de todos os sangues que correm em nossas veias pouco a pouco, gradualmente. Precisamos queimar etapas, dar saltos para frente, esquecer o que não fizemos no século XX, para entrar com esperança no século XXI, olhando para o agora.
Solucionaremos então o paradoxo, resolveremos a dualidade entre Inferno e Paraíso, por uma maior compreensão da Terra, que somos nós mesmos, o Brasil e suas circunstâncias. Para isso, é preciso inventar um novo país e sua cultura, tendo como uma das fontes o audiovisual, essa maravilha do século XX, da qual o cinema, a dois anos de seu centenário, é o avozinho fundador. Penso na brilhante formula gramsciana, como instrumento – estimular o pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade.
Ou então, exagerando e muito à nossa moda, dizer como o grande poeta Manoel Bandeira, pensando no Brasil : ‘‘ Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu ?’’