O gênio da porta ao lado


Do jornal 'The Mail' de domingo - 03.12.2006
por David Sore

Sua gritaria podia começar a qualquer hora da noite ou do dia, mas frequentemente parecia começar justo na hora de eu ir pra cama. Havia batidas e barulho de coisas se quebrando vindos da porta ao lado, enquanto a mobília era destruída, além de um latido incessante, mais parecido com um animal do que com um humano.

Isto podia durar duas horas e, como uma criança pequena, isso me apavorava. Geralmente eram apenas berros incoerentes e raivosos, mas bem de vez em quando dava pra se distinguir palavras. Elas eram sempre as mesmas: 'Roger Waters #*&@#$! Eu vou te matar, seu *&%$#@.' Não era muito divertido ter Syd Barrett como vizinho.

É claro que eu não sabia quem era ele naquela época. Somente mais tarde que eu percebi que ele era uma lenda do rock, um dos membros fundadores do Pink Floyd, que tinha arrebanhado Paul McCartney, David Bowie e Pete Townshend entre seus fãs. Recentemente, foi revelado que Syd, que morreu em julho, deixou 1,2 milhões de libras em seu testamento.

Ele era o gênio compositor por trás da maioria do material do início do Floyd, incluindo os singles de sucesso See Emily Play e Arnold Layne, mas seu crescente comportamento bizarro o levou a deixar a banda em 1968, logo depois do lançamento do seu primeiro disco.

Pink Floyd - com Roger Waters, Richard Wright, Nick Mason e o substituto de Syd, David Gilmour - veio a se tornar uma das bandas de rock mais bem sucedidas de todos os tempos. A carreira de Syd se atrofiou depois de alguns discos solo. Então ele se mudou para a porta ao lado da minha.

Eu morei com minha família na Praça de St. Margaret, no.7, em Cambridge. Era um beco tranquilo com casas semi-conjugadas no estilo dos anos 30. Winifred, a mãe de Syd, morava na porta ao lado, no número 6, e em 1981, quando eu tinha seis anos de idade, seu filho retornou de Londres pra morar com ela.

A primeira vez que o vi, eu estava brincando com minha bicicleta em nossa garagem. Ele saiu de sua casa com uma tesoura de cortar grama e uma serra, um homem impossível de se descrever com seus 30-35 anos com o cabelo ralo. Sem falar nada, ele começou a cortar árvores e galhos no seu jardim. O jardim já tinha sido lindo - os moradores anteriores trabalhavam no Jardim Botânico da Universidade de Cambridge - mas era como se ele fosse destruído por um tornado depois que Syd terminou. Ele cortou todos os troncos de árvore, carregou-os até seu quintal e os queimou numa enorme fogueira. Meus pais ficaram muito indignados, mas eles não podiam fazer nada. Nós não tínhamos idéia que isto era o começo de uma rotina que se repetiria de novo e de novo. Sempre que os arbustos cresciam de novo, Syd os arrancava e os queimava. Ele também destruiu e queimou seu 'portfolio' - pinturas psicodélicas, que vagamente lembravam Jackson Pollock. As fogueiras eram enormes, com chamas de 2 metros de altura, mais ou menos, o que causava uma grossa névoa de fumaça branca por sobre toda a rua.

A mãe de Syd, que era amiga de meus pais, estava sempre se desculpando, mas ela não podia fazer nada para detê-lo. E nós logo aprendemos que não adiantaria protestar com o próprio Syd. Qualquer tentativa de impedi-lo de continuar sua rotina seria respondida, no máximo, com um olhar vazio. Às vezes ele podia soltar o verbo e fazer ameaças. Quando Syd estava em uma de suas piras de sair queimando tudo, tudo o que a gente podia fazer era desistir e entrar em casa, fechando todas as portas e janelas. Syd realmente não se preocupava.

Mas as fogueiras eram a menor de nossas preocupações. A paz era frequentemente abalada pelo som de copos se quebrando. Quando os demônios internos que atormentavam Syd se superavam, ele podia arremessar coisas através de suas janelas. Isso aconteceu pelo menos umas cem vezes. Seu gramado estava constantemente desarrumado por conta dos vidros quebrados, canecas, panelas e enfeites. Às vezes a "quebração" de janelas começava no meio da noite e eu deitava na cama com medo que ele começasse a atacar nossa casa. Eu estava convencido que um dia ele acabasse com suas próprias janelas e viesse quebrar as nossas. De vez em quando, uma janela era consertada, e então quebrada novamente no dia seguinte. Syd sozinho mantinha os lucros das vidraçarias da região.

Mas os acessos de gritaria eram de longe o aspecto que mais incomodava no seu comportamento. Ouvir um homem adulto se lamentando e soltando gritos estridentes durante horas era pavoroso para mim e para minhas duas irmãs. Nós não entendíamos de doenças mentais. Até onde a gente sabia, nós éramos vizinhos de um lunático inconsequente e possivelmente perigoso.
Nossos maiores medos se confirmaram na noite em que Syd foi levado numa camisa-de-força.
Nós já tínhamos ligado pra polícia anteriormente algumas vezes. Eles chegavam e trocavam umas palavras com a mãe de Syd e iam embora sem tomar mais nenhuma atitude. Mas nesta ocasião seu surto tinha sido particularmente violento e nós descobrimos mais tarde que ele tinha
atacado sua mãe. Ela chamou a polícia. Eu me lembro de ficar espiando na janela e ver Syd sendo levado embora à força. Sua mãe estava muito desapontada e estava implorando para ele se acalmar mas ele cuspia uma pá de palavrões. Eu gostaria que ele nunca mais tivesse voltado. Mas ele voltou alguns dias depois e sua mãe se mudou para a casa da filha, Rosemary. Ela não podia mais lidar com Syd.

Depois disso, Rosemary o procurou. Ela o levava fazer compras em Sainsbury toda semana. A loja ficava a 10 minutos de distância. Ela o pegava, dirigia com ele até lá e andava pelos corredores, como se ele fosse uma criança, depois o levava de volta. Ele ficava sentado no carro até Rosemary abrir a porta pra ele e o levar pra dentro de casa. Ele parecia que realmente não sabia onde ele estava ou o que estava acontecendo. Com sua mãe ausente, seu comportamento continuava como antes. Nossa família fazia o papel de um "sistema de prevenção", ligando para sua irmã quando ele ficava fora de controle. Ela chegava e acalmava a situação.

Foi dito que Syd tinha pouco interesse no Pink Floyd depois de deixar a banda, ainda que as fogueiras e janelas quebradas fossem mais frequentes em 1986, quando o Floyd estava na mídia por causa de uma disputa legal entre Waters e os outros membros. Podia ser coincidência, mas Syd parecia culpar Waters por qualquer coisa - foi o único nome que ele citava nos seus gritos e ameaças. Eu costumava me preocupar em como nós nos protegeríamos caso ele se tornasse destrutivo e nos atacasse. Syd me lembrava Jack Nicholson em O Iluminado.

Em todos estes anos, ele nunca me disse mais que algumas palavras de uma vez. Se a gente passava na rua, ele às vezes conseguia soltar um murmurado 'oi', mas quase sempre simplesmente apressava o passo, de cabeça baixa. Às vezes ele até atravessava a rua para me evitar. Uma constante massa de fãs vinha visitá-lo. Eles frequentemente batiam em nossa porta. 'É aqui que mora o Syd?' Nós dizíamos que não. A gente sabia que ele não queria ser perturbado e que, se fosse, poderia mandar todo mundo à PQP. Os fãs às vezes não aceitavam um não como resposta e batiam na sua porta com força. Geralmente não havia resposta, mas de vez em quando ele abria a porta, provavelmente por engano. Ele podia até bater a porta na cara dos fãs assim que percebesse quem eles eram.

Seu psicológico se deteriorou depois da saída de sua mãe. Ele não se preocupava em abotoar sua camisa, se ao menos ele se preocupasse em usar uma. Usava calças que eram muito grandes pra ele. Ele parecia descabelado. Nós às vezes o vimos andando na rua usando apenas a parte de baixo do pijama. Ele parecia viver de cafés-da-manhã gordurosos e frequentemente deixava sua frigideira queimar. Nós podíamos ver as chamas alcançando o teto da cozinha mas não havia sinal de Syd. Ele tinha uma concepção nada segura a respeito do fogo.

Ele bebia muito, provavelmente uma garrafa de Whisky por dia. Syd era também um fumante inveterado. Quando adolescente eu trabalhei na agência de notícias local. Syd entrava lá quase todo dia atrás de cigarros. Ele sempre comprava 60 e às vezes levava tabaco a granel e fumo de corda também. Ele comprava marcas diferentes em cada vez, pedindo por '20 Rothmans, 20 B&H, 20 Embassy no.1', ou '20 JPS, 20 Embassy Regal, 20 Marlboro'. Ele pegava os cigarros e saía sem falar mais nada. Ele nunca levava dinheiro, mas deixava grandes contas que sua irmã costumava pagar. Até então, eu sabia quem ele era e achava difícil de conciliar sua reclusão na meia-idade, e os enormes problemas em se relacionar com o mundo, com o músico boa-pinta que eu vi sorrindo em fotos antigas. Como o autor de letras poéticas ricas em imaginação surreal poderia estar reduzido a alguém que malmente conseguia formar uma frase completa? Eu tinha lido o suficiente pra saber que a crítica atribuía isso a um colapso causado pelo LSD no auge de sua fama. Syd era um exemplo vivo do perigo que causam as drogas.

Em uma ocasião ele veio até a loja onde uma revista de música trazia uma foto do Pink Floyd da época de Syd na capa. Eu disse a Roger - seu nome real, Syd era um apelido - 'Você está na capa da Mojo hoje, Roger.' Ele pareceu surpreso. 'Eu ficarei com ela', ele disse. Tive a impressão que ele havia gostado. Nos 25 anos em que morei na Praça St. Margaret, eu o vi sorrir apenas uma vez. Foi nos anos 90, quando eu comprei um Lancia Delta HF Turbo - uma réplica do carro de rali que a Martini patrocinava nos anos 80. Eu estava muito orgulhoso e um dia eu estava lavando o carro, segurando uma mangueira em cima do telhado, portanto a água formava uma cascata. Syd veio de seu jardim e ficou me olhando com um grande sorriso em seu rosto. Ele não era conhecido como um entusiasta do automobilismo - seu único 'veículo' era uma velha bicicleta surrada. Eu creio que a cena o alegrou porque ele achou que eu estava regando meu carro, como se ele fosse uma planta. Talvez isso o tenha levado de volta aos seus anos 'hippies', afogados no LSD.

Mas ele não era de todo ruim. Quando ele não estava tendo um de seus ataques, ele era bem quieto. Eu nunca ouvi sua televisão. Eu o ouvi tocar (ouvir) música um punhado de vezes - e sempre música clássica ou jazz moderno, nunca pop ou qualquer trabalho próprio seu.

Nos seus últimos anos, seu comportamento se tornou menos errante e a gritaria também parou. Ainda havia uma fogueira de vez em quando. Nós até recebemos alguns cartões de Natal dele. Ele mesmo os fez, desenhos de Natal lindamente feitos - sinos e plantas características do Natal em um cartão branco. 'Tenham um Natal muito feliz, de Roger', dizia a mensagem. Um ano, quando eu li no jornal que era seu aniversário, eu deixei um cartão na sua caixa de correio. Quando o vi depois ele disse 'oi' e fixou seu olhar no meu por alguns segundos. Ele parecia estar me agradecendo. Depois disso eu parei de temê-lo. Eu sabia que ele tinha uma alma profundamente perturbada, precisando de simpatia mais do que qualquer outra coisa.

Syd morreu em casa em julho, devido a complicações crescentes de sua diabetes. Ele tinha 60 anos e esteve no Hospital de Addenbrooke por mais ou menos três semanas antes disso. Sua irmã nos disse que quando ele voltou pra casa ele precisaria de uma enfermeira que morasse lá para cuidar dele. Ele ficou em casa apenas um dia e meio e então faleceu. Sua casa foi recentemente vendida e eu fui vê-la enquanto ela estava à venda. As cores da casa poderiam ser descritas como interessantes - um quarto é laranja, outro azul, vários são uma combinação de laranja, azul e rosa - e a cozinha é a prova das aventuras frustradas de Syd quanto ao 'faça você mesmo': prateleiras frágeis e com formatos estranhos. Uma imagem me encanta. Um hipopótamo de brinquedo estava pregado a uma das fechaduras. Isso era típico de Syd: misterioso, bizarro e um pouquinho, bem, louco. Eu sinto muito que ele tenha morrido - mas não sentirei saudades.

Filme raro de Syd Barrett sobre efeitos de cogumelos alucinógenos



Um comentário:

Anônimo disse...

Meu nome é Wagner. Sou guitarrista da banda echoes (www.bandaechoes.com.br) de onde a figura que abre a matéria foi tirada.
Gostei muito da matéria... não conhecia essa vida do Syd após o Pink Floyd.
Mas ao contrário do que o autor diz... eu vou sentir muita saudades do Syd sim... e se depender de mim vou continuar a divulgar o trabalho dele, pois é maravilhoso...

SHINE ON YOU CRAZY DIAMOND!
LOND LIVE SYD!

Abração,
Wagner.